MEMORIAL AFRODESCENDENTE

Por: Leonardo Sampaio

Apresento nesse texto uma trajetória de vida na relação afrodescendente em que destaco acontecimentos vividos a cada dez anos da minha existência. É um trabalho que nasceu no Curso de Especialização Pós-graduação Lato Sensu História e Cultura Africana e dos Afrodescendentes para Formação de Professores de Quilombos, pela Universidade Federal do Ceará – UFC, sob a coordenação do Núcleo de Africanidades Cearenses – NACE  que tem como objetivo travar uma discussão pedagógica sobre o preconceito em relação ao negro e o racismo impregnado na sociedade brasileira.

Pra começar, inicio dizendo que minha primeira relação com a negritude começa com a parteira a parteira que passamos a chamá-la de madrinha Juvina, as lavadeiras de roupa da família Henrique a engomadeira, os caseiros, leiteiros, cambiteiros[1], vaqueiros, os trabalhadores da roça, as brincadeiras de crianças. Todos eram negros e minha pele muito branca fazia com que eles me apelidassem de Macaxeira descascada, ou de capote por ter a pele cheia de sarnas.
O cenário onde nasci é o município de Abaiara, no pé da Serra do Mãozinha, parte da Chapada do Araripe na região do Cariri (Ce), lugar onde a natureza fertiliza a vida com uma fauna e flora inspiradora da poesia cantada pelo violeiro, rimada no cordel, na embolada e no papel. É também terra de engenhos, canaviais, águas cristalinas e desigualdades sociais, têm ainda a beleza dos fósseis, a religiosidade do padre Cícero e do Beato José Lourenço, a truculência dos coronéis, o poeta Patativa, o jagunço, o cangaço, a preta parteira que ajuda a parí, a rezadeira e as benzedeiras que espantam os males do encosto e do quebrante curando dores com a fé e uso das plantas medicinais. Ali é onde as matas fornecem ao imaginário popular os mitos, assombrações e visagens.  As caiporas são as almas dos índios que se manifesta por meio de assobios, que tem por intenção intimidar os cachorros que estão caçando na mata e os caçadores para evitar que as caiporas permaneçam próximas a eles, o bicho homem, cheio de malícia, mas temeroso às coisas invisíveis que vem do universo, procura agradá-la com péia (pedaço) de fumo de rolo brabo. Dessa forma, a caipora libera os cachorros e estes retornam à mata em busca de caça.
Por algumas vezes já na adolescência cheguei a fazer esse trajeto com os caçadores que saiam à noite com uma enxada, uma pá, fachos com fogo pra clarear os caminhos e os cachorros para farejar a caça. Os caçadores eram: o vaqueiro, o leiteiro, carreiro e o amansador de animal brabo, ou seja, as mesmas pessoas negras que trabalhavam em minha casa. Foi em meio a essa diversidade cultural que nasci e vivi até os quinze anos, sem uma consciência critica, mas com uma identidade com a cultura popular produzida pela raça negra do meu lugar.
Nessa fase da vida vivi muito próximo aos trabalhadores do lugar, buscava integrar-me às suas atividades, não por obrigação, mas porque me sentia à vontade e gostava de observar como realizam seus afazeres. Algumas pessoas foram marcantes nesse período de minha vida, como por exemplo: os senhores Joaquim Pífano, Pedro Bem, Manoel e Cícero, sendo estes os homens que faziam a limpeza do mato, trabalhadores da enxada, seu Cajueiro, cambiteiro com um comboio de animais carregando algodão pra usina ou lenha pra cozinha, cana para o engenho e outros produtos conforme o período de safra, seu Dudé, vaqueiro com o zelo pelos cavalos e o gado, Dico, carreiro com o boi manso na canga puxando o carro e o piado do eixo da roda como sinal da perfeição no trabalho, a Beatriz, Otávia e Toinha na limpeza das roupas lavadas e engomadas.
A cultura se fazia presente no roçado com o humor, as brincadeiras e o canto afinado das mulheres negras catadeiras de feijão e algodão com sua mochila a tiracolo puxavando a canção e as vozes se espalhavando pelos campos ao vento cantando e encantando os sertões abaiarenses em pleno sol abrasador, às noites o reisado, os caretas e bumba-meu-boi, o Côco animada pelos mestres e mestras arte popular como Manoel Carreiro e Maria Casimiro, no artesanato de couro estava Manoel Agostinho produzindo Gibão de Couro com muita arte e maestria e Antônio Pedro fazendo cabeçada, chicote, cela e no cipó Jacinto Belo produzindo Caçuá, Balaio e peneira, o samba estava nas festas na comunidade quilombola do Urubu onde as caboclas dançando o forró atraia a mistura de raças. Dona Preta fazia Tiá com seu equipamento manual caprichava no acabamento do tecido pra redes, o bordado saia do lado de casa D. Maria ..., na arte da culinária havia Damásia com sabores exuberantes, nos cantos das novenas as meninas Henrique com a beleza da voz afinada, os penitentes com seus sacrifícios saiam cantando louvores à meia noite, se açoitando, se cortando e ainda no dia seguinte iam trabalhar em serviços pesado com seu instrumento afiado que poderia ser: roçadeira, foice, machado, enxada, enxadeco, a pá, a lavanca, facão ou chibanca lavrando a terra ou colhendo a produção na roça, como a quebra de milho, bater o feijão seco, milho ou o arroz, amansando burro brabo como o Galego, negro de fibra e coragem que muito me inspirou e me encorajou na montada de animal brabo.
Até o final da década de 50, quando Abaiara ainda era distrito, e não possuía transportes públicos, os meios de locomoção se diferenciavam de acordo com as classes sociais. Assim, os proprietários de terras, sempre pessoas brancas, andavam em cavalo machadores equipados com arreios de couro. Já os afrodescendentes, que por sua vez eram pobres, locomoviam-se a pé ou montados em jumentos que possuíam cangalhas feitas de madeiras e palha de carnaúba, e quando necessitavam transportar mercadorias e/ou crianças utilizam os caçuás, que eram cestos feito de cipó, presos às cangalhas dos animais.
Esses moradores e moradoras do lugar possuíam filhos/as com idades próximas à minha e constantemente me juntava a essas crianças para brincarmos de jogar bola, pião, bila (bola de gude), triângulo, cobra cega, cinturão queimado, esconde-esconde, cantigas de roda, curral de gado e jogo de bola. Geralmente nos reuníamos para brincar nos terreiros, no paiol de algodão e na bagaceira do engenho de minha avó, a senhora Julinha.
Outro fato interessante refere-se à religião, isso porque percebia que quase todos freqüentavam a igreja católica. No entanto, observava que nas missas as mulheres ficavam distanciadas dos homens. Mas essa separação, no recinto da igreja, era acentuada devido à classe social, ou seja, as mulheres, damas ou parentes dos proprietários de terra, sentavam-se nas cadeiras da frente, já as mulheres agricultoras e domésticas ocupavam os últimos lugares, ou mesmo ficam em pé, uma vez que a quantidade lugares da igreja atendia apenas a esse grupo da elite do lugar.
 As festas da coroação de Nossa Senhora eram realizadas sempre com a presença de crianças de pele branca e em uma dessas coroações aconteceu um fato bem característico da discriminação racial quando uma adolescente negra foi vestida e pintada de branco para poder coroar a imagem, como mostra no poema.
Em toda essa adolescência gostava de andar a cavalo cuidar dos animais, conviver com os trabalhadores da raça, carreiros e vaqueiros curtindo a cultura popular, a poesia, o cordel, o repente, o reisado, os caretas, o penitente, o côco, o samba, o forró, a dança, a banda cabaçal, o aboio, a caça e a pega de gado, tudo como manifestação cultural criada por pessoas pobres, negras e quase toda analfabeta. Era aí onde aparecia claramente o apartheid embutido num senso comum relacionado com a educação em que muitas vezes eu ouvia o próprio trabalhador negro e pobre dizendo: “filho de pobre não precisa estudar, a caneta dele é o cabo da enxada”. Enquanto ouvia isso, por outro lado estava os filhos da classe dominante indo estudar em escolas religiosas em outros municípios ou estados para serem doutores como eram chamados os médicos, advogados, ou serem professoras, padres e freiras. Nesse convívio, sempre gostei de estar com os pobres negros, mas por pertencer à classe branca e rica do município sofria sempre castigo, por me misturar com caboclos/as ou moleques das estradas como era chamadas as crianças e jovens negras. Seria eu, um rebelde, desobediente e que até apanhava bastante por isso, era como se houvesse uma certa “proteção”, ou cuidado diferenciado para não adquirir costumes fora do padrão estabelecido com cunho moral de doutrina religiosa romana, portanto européia.
Enquanto isso, o município era formado por alguns grupos de famílias negras que se localizavam em pequenos quilombos ou comunidades negras, vivendo em estrema pobreza por falta de terra para produzir. Outros/as moravam nas fazendas cuidando do gado, limpando roças e em trabalhos domésticos nas casas grandes. A alforria lhes tirou a corrente, mas não libertou o Ser, com sua cultura ancestral e direito a terra, trabalho digno, saúde, educação, lazer e assim tornavam-se serviçais nas fazendas com total dependência e que chegavam até impedir suas manifestações culturais. Somente aqueles que moravam em vilas fora das fazendas conseguiam realizar suas festas e crenças religiosas. Um fato interessante é que, mesmo eu pertencendo à outra classe, ao chegar à cidade mais desenvolvida como Milagres, era discriminado pelas pessoas daquela cidade e tratados como moradores dos matos, do pé da serra, éramos chamados de matutos e beradeiros, ou seja, pessoas sem qualificação. Se era assim comigo, imaginem com negros e negras.
Depois desse relato, para facilitar o entendimento dele apresento um pouco da minha origem familiar por parte da avó mãe de meu pai que era viúva e dona de engenho, casa de farinha e terras muito férteis que passaram a ser administrado pela família, um tio tomava conta do engenho, casa de farinha e parte das terras, meu pai cuidava do gado, dos animais e de outra parte das terras, uma tia era catequista e professora, a outro era freira e o outro tio padre. Todos eram pessoas simples e cuidadoras das outras, seja no aconselhamento, na saúde, na fé, na educação, no trabalho. Com a morte de minha avó houve a divisão das terras e dos bens, acabouce engenho, casa de farinha e cada um ficou com um pouco da herança e isso reduziu o padrão de vida, principalmente meu pai e minha mãe com 18 filhos para criar com a produção da terra, aí precisou da ajuda de todos da família. Foi nesse mundo de cultura européia, dos índios cariris e da negritude que me criei até os quinze anos vivendo na área rural e estudando ainda no ensino primário. Na idade de 14 e 15 anos passei a estudar na Cidade de Milagres indo montado a cavalo ou em burro todos os dias, a uma distância de 30 km com sol ou com chuva, com poeira ou com lama.
Na fase adolescente aos dezesseis anos houve uma mudança radical na minha vida quando fui fazer a 4ª e 5ª série primaria e prova de admissão para ingressar no ensino (hoje) fundamental dois, dessa vez na Capital do Ceará, Fortaleza terra da luz, de Iracema, de belas praias, de favelas e da aldeota contrastando as classes sociais visíveis no espaço urbano. Uma cidade e um estado onde foi decretado que não existia negros. No entanto vim morar na periferia, onde a maioria da população visivelmente é negra, principalmente nas favelas, o que caracteriza a periferia como sinal de pobreza, de violência, de discriminação social. Ali no bairro eu passava por uma nova adaptação de costumes e valores, deixava de ser o filho de rico, de poderoso e me “misturava” aos pobres do lado oeste da cidade, uma região com paisagens de sítios, onde o urbano se mistura com o rural desde a criação de animais, à população migrante vinda do interior do estado, assim como eu. Tudo mudou na minha vida, apenas a lamparina continuava, não havia energia na rua e nem na maioria do bairro Jóquei Clube e Henrique Jorge. Éramos quatro irmãos morando em uma casa, trabalhando e estudando incentivados e ajudados pela Tia Freira da Congregação de Caridade, Irmã Maria Tereza, foi ela que fez meu pai comprar essa casa e nos troce do interior para estudar. Ela trabalhava com doentes mentais do Asilo de Parangaba, (hoje, Hospital São Vicente de Paulo), além do hospital, era catequista, evangelizadora e buscava ajuda de políticos, empresários, amigos e até de programas estrangeiro para distribuir com os pobres das favelas nas proximidades do hospital, nessas ajudas adquiria linhas e tecidos e ensinavas as mulheres pobres a bordar e vender os produtos, como panos de pratos, toalhas ou seja, coisas úteis e fáceis de comercializar como forma gerar renda.
No bairro Jóquei Clube onde eu morava bem na esquina próximo a nossa casa havia um terreiro de macumba onde morava um jovem negro muito bem relacionado com todos nós, sua mãe e as tias eram muito queridas no bairro e foi lá onde tive o primeiro contato com pessoas de religião de matriz africana, tinha uma amizade tão boa que sempre me orgulhei disso.
Já do ponto de vista cultural, na cidade grande a cultura interiorana afrodescendente sentia ela adormecida, sem vida. Depois comecei a perceber algo mais muito timidamente, eram alguns intelectuais realizando pesquisas e encontrando o migrante com a cultura ancestral e começava a fazer resgate, estimular a formação de grupos de Maracatu, capoeira trazendo a batida dos tambores da cultura afro de terreiros de umbanda e candomblé para as ruas. Já os terreiros funcionam com seus ritos em ambientes mais familiares, nas residências dos pais e mães de santo espalhados nos bairros e favelas que é onde concentra a maioria de negras e negros.
Até os 20 anos vivi um tempo de estudo, trabalho e lazer em Fortaleza. Era a década dos anos 60, tempo de juventude transviada, de hipp, de invasão do rock, que virou brasileiro, liberdade é calça Lee e desbotada, de jovem guarda romântica, dançante e apaixonada, de MPB e bossa nova. Havia saído do interior de uma família tradicional que tinha a intenção de seguir toda uma cultura religiosa, no entanto a juventude estava numa efervescência de invasão de cultura americanizada e a desvalorização da cultura popular brasileira. Havia um disfarce da ditadura militar com influencia no mercado de consumo Americano e criava um movimento de massa com a juventude em torno da cultura, era a forma de disfarçar a violência da ditadura contra os opositores. Essa fase me leva a sair dos padrões sertanejos e virar urbanoide na periferia da cidade onde mora, brancos, negros e índios pertencentes a uma mesma classe social e de culturas interioranas diversificadas de serra, sertão e litoral. Essa convivência jovem de tantas misturas culturais e políticas ela rompe com os padrões tradicionais e se choca com os princípios e objetivos familiares que perde o controle dos pais, já que continuam morando no interior e os filhos na capital, vivendo na periferia, lugar de bairros pobres, favelas, violência, drogas e “gente sem valor”. Mas estávamos todos juntos nas praias, nos bailes e campos de futebol. Nessa época servi ao exercito, a intenção era disciplinar aos velhos padrões, mas lá os soldados eram da mesma classe pobre, em que muitas vezes, em vez de disciplina era a humilhação do poder hierárquico da farda, das fitas e estrelas sob os soldados, principalmente os recrutas (soldados novatos).
Uma nova reviravolta na vida se dá, quando aos 21 anos migrei para São Paulo, foi uma nova experiência frustrante por não ter qualificação profissional que o mercado de trabalho exigia e ainda mais ter de lhe dá com o preconceito contra os nordestinos. Chamavam-nos de baianos de forma pejorativa, como se fossemos uma sub raça advinda de outro planeta, onde só existe seca, fome, miséria e um povo sem cultura. Por muitas vezes senti-me humilhado. Mesmo assim segui em frente como nordestino em busca da sobrevivência, da superação como faz muitos outros que passavam a desempenhar altos escalões nas diversas esferas das empresas ou do poder público, com marcas de sabedoria e inteligência. De São Paulo fui para o Rio de Janeiro, lá não conheciam o Nordeste brasileiro, éramos todos Paraíba, terra de gente valente, de cangaceiro, que rasga um com a peixeira e come o fígado.
A melhor fase minha de vida foi no Rio de Janeiro já cheguei com trabalho e moradia certa e uma convivência com pessoas militantes de esquerda, aí voltei a estudar e lê os clássicos da revolução russa, chinesa, cubana e assim passei a entender a luta de classe, que vivíamos em uma ditadura militar, que havia capitalismo e socialismo, que o mundo estava divido entre os dois modelos econômicos e político, que havia movimentos de resistência à ditadura, que havia prisões e torturas aos opositores do regime militar. Foi no trabalho que senti a exploração do capital, como funciona o acumulo de riqueza, como se dá a exploração do homem pelo homem. Do primeiro emprego no Rio fui demitido quando chegou a tecnologia computadorizada, no segundo trabalhava no setor burocrático de uma metalúrgica e nas horas vagas me juntava com aos operários conversando sobre a organização dos trabalhadores, a exploração, o socialismo. Minha presença naquele ambiente da empresa passou a ser estranho já que eu era do setor burocrático, aí o setor de pessoal passou a me observar e logo fui taxado de comunista e pessoa perigosa para estar naquela empresa, aí fui demitido por ter idéias subversivas. Saí à busca de novo emprego e não conseguia devido as referencias de subversivo dadas pela empresa anterior. Sem conseguir mais emprego durante um ano, tive que sobreviver como vendedor autônomo. Peguei o dinheiro que recebi dos direitos trabalhistas, comprei de relógios no contrabando e fui vender a funcionários de repartições públicas e privadas no Rio de Janeiro.
No final do ano de 1976 retorno a Fortaleza com outro olhar para o mundo e muitos sonhos de engajamento em políticas transformadoras da realidade de pobreza em todo o país. Já não admitia pacificamente ver um planeta tão rico e tanta gente passando fome, precisava me contrapor ao senso comum de que tal situação não era vontade de Deus.  Voltei a trabalhar como vendedor de uma empresa de representação comercial, mais uma vez me senti explorado e aí criei meu próprio negócio e me tornei livre pra fazer a militância que mais queria. Encontrei no meu bairro, velhos militantes comunistas desde a intentona do Getúlio Vargas de caça aos comunistas. Fiz amizade com estes militantes marxistas e passei a exercer duas funções de vendedor de mercadorias e outra de estudar e vender idéias revolucionárias. Por meio destes militantes estive com Carlos Prestes e Gregório Bezerra logo que voltaram do exílio, em encontros promovidos pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) ainda na clandestinidade.
Essa nova fase estava chegando aos vinte e oito anos de idade e engajei-me nas lutas populares e políticas. No primeiro momento em 1978 acompanhei a greve dos motoristas de ônibus de Fortaleza, era uma fase de ditadura militar, em São Bernardo do Campo, São Paulo os metalúrgicos enfrentaram também uma greve, eram as primeiras manifestações de massa no período da ditadura, a Igreja Católica se fez presente naquele momento contra a repressão policial e em apoio a greve. Esse período estava muito próximo aos militantes da velha guarda do PCB e fui convidado a participar de reuniões clandestinas do partido em um núcleo no bairro Jóquei Clube. O ateísmo era uma linguagem predominante dos comunistas em todo o mundo, a leitura marxista sobre a religião como ópio do povo levava a essa atitude de negar a existência de Deus e colocar o materialismo no centro da discussão e na postura da militância, eu também estava nessa. Tive uma formação religiosa em que havia uma pregação doutrinária anticomunista, cheguei a ouvi sermão que padre franciscano ainda em Abaiara onde o pregador dizia que os comunistas matavam os pais e sangravam as crianças. Estas falas vinham de congregações religiosas que foram reprimidas na ditadura sitalinista na União Soviética, onde predominava a ditadura de estado e era vista como o berço do modelo comunista de governar. A minha leitura de revolução não aceitava esse modelo como hegemônico, porém o comunismo e o socialismo sim. Passei a lê e acompanhar a revolução na América Latina, percebi a religiosidade do povo, e que esse povo, estava sendo levado a uma leitura de mundo a partir do senso comum, da salvação da alma pelo espírito santo, do conformismo com a miséria em troca do encontro com Deus na eternidade. Os exploradores também recebiam a salvação por meio do perdão no juízo final, o que para mim era uma contradição do que está na Bíblia, onde diz: “é mais fácil um Camelo passar no fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Esse olhar me leva a entender que o público do qual deva ser protagonista da revolução socialista, no caso os trabalhadores e desempregados estão impregnados pela religiosidade e que a linguagem para chegar até eles não poderia ser pela via do ateísmo, mas pela luta de classe, da exploração do homem pelo homem. Pensava na construção da revolução brasileira e que passava por uma aproximação com os cristãos. Foi travando esse debate que fui procurado por um grupo de cristãos missionários/as que discutiam a Teologia da Libertação, foi daí criei uma identidade mais forte com este grupo, por encontrar a ligação teológica do Cristo libertador com o marxismo e ao mesmo tempo a metodologia do ver, julgar e agir. Em 1979 o grupo formado por padres, freiras, seminaristas e como leigo engajei-me nele e partimos para a primeira ação e escolhemos a Comunidade da Veneza, no Parque Genibaú, na periferia de Fortaleza, com objetivo de formar Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Com o bom resultado na Veneza, devido à formação e o surgimento de lideranças importantes que se revelaram no enfrentamento por infraestrutura no bairro e qualidade de vida, que no ano seguinte, em 1980, o grupo amplia o trabalho e chega à Favela da Fumaça no bairro Pici. A área era de muita pobreza, com becos estreitos e sem nenhum saneamento básico, nem energia, nem água encanada, nem escola, nem posto de saúde aí os trabalhos começam numa reflexão a partir da fé, se organizar e buscar os direitos constitucionais. Nessa reflexão de fé e política puxo o grupo para discutir a criação do Partido dos Trabalhadores - PT e formamos um núcleo de base forte que chamou à atenção das CEBs e do próprio partido. Foi nesse contexto a formação do que é hoje o Espaço Cultural Frei Tito de Alencar – ESCUTA, onde ajudei a fundar e a me afirmar como educador popular a 34 anos de trabalho voluntário.

Outro momento que marca minha trajetória revolucionária foi de 1979 a 1984 num período de cinco anos de grande seca no Ceará, a miséria no interior era visível, as populações de trabalhadores rurais negras e mestiças invadem as cidades em busca de alimento e trabalho e eram tratados como flagelados e mendigos numa situação humilhante, o tanto quanto a escravidão. A situação no interior ficou insustentável e muitos grupos marcharam para a Capital, Fortaleza, a cada dia a cidade ia inchando e já não comportava tanta pobreza vagando pelas ruas, era a população dos “sem” - sem alimentação, sem casa, sem emprego e sem moradia, sem saúde, sem educação, enfim, sem dignidade humana. Eu, como militante de esquerda e das CEBs fui pra cima e ajudei a reunir essa população de miseráveis na Praça José de Alencar e marchar com cerca de 10 mil pessoas, pela Avenida Santos Dumont até o Palácio da Abolição na Aldeota com uma pauta de reivindicações para cobrar do Governo do Estado medidas capaz de amenizar a fome da daquela população. Daí foi criada a Jornada de Luta Contra a Fome e me tornei uma forte liderança desse movimento, passando a ser conhecido e reconhecido em todos os seguimentos da sociedade de Fortaleza pela coragem, o compromisso, a disponibilidade e a elaboração do discurso revolucionário sócio-político-pedagógico no enfrentamento com o estado burguês.
Essa população agora organizada, quando não encontrou resposta nas políticas públicas do poder constituído, partiu para saquear comércios e ocupar terras ociosas em toda a cidade. Nessa ocasião o estado aparece com a repressão, em defesa do patrimônio particular e da propriedade privada prendendo, batendo e machucando um povo sofrido, faminto e cansado pelo sofrimento. Essa força bruta do estado contra a sociedade me fortalece o desejo maior de lutar em defesa das pessoas sem vez e sem voz e aí eu não pára mais, a revolução armada para mim passa a ser uma questão emergente, no entanto não podia ser foguista, os exemplos das guerrilhas urbanas e do Araguaia já mostravam que não era esse o caminho, o povo tinha que de fato assumir a revolução, no entanto o tempo era de ditadura militar. Passei assim a me juntar com as pessoas que vinha da Jornada de Luta Contra a Fome e criamos o Partido da Revolução Comunista – PRC, que tinha como estratégia construir a revolução brasileira pela luta armada e assim foram criados vários núcleos e uma direção a nível nacional.
Uma das dirigentes do PRC era a Deputada Estadual Maria Luiza Fontinele que se filiou ao PT e em 1985 lançamos candidata a Prefeita de Fortaleza devido à inserção de seu mandato junto às populações periféricas e com a força do PRC, a militância do PT e das CEBs, além de ser professora da Universidade Federal do Ceará – UFC. Participei da coordenação da campanha na parte de mobilização nos bairros e favelas e ao final fomos vitoriosos. Agora a questão era governar a cidade, destruída, cheia de lixo, a máquina corroída pela corrupção, inchada pelo empreguismo e inoperante no que diz respeito aos serviços e às políticas públicas. Era o primeiro mandato do PT em uma capital e de uma mulher à frente. Fazia 20 anos que não havia eleições pra prefeito nas capitais brasileira, durante esse período os prefeitos de capitais eram nomeados pela ditadura militar. No primeiro ano de gestão trabalhei como diretor do Centro Social Urbano César Cals, depois fui diretor do Departamento de Habitação (hoje HABITAFOR), onde tive a oportunidade de desenvolver políticas de urbanização de favelas, melhorias de casas e construção de conjuntos habitacionais para populações pobres da cidade. Era uma política de rompimento com o latifúndio urbano. Nesse período ocupei espaços da mídia por estar construindo 10 mil moradias populares na cidade e urbanizando favelas, com isso conquistei a simpatia dos diversos setores da sociedade, por perceberem a seriedade como conduzia as políticas públicas de moradia em diálogo com a população carente, levando em conta princípios éticos na função de gestor público.
Nessa época 1988, houve divergências na gestão da prefeita Maria Luiza envolvendo o PT e o PRC, o que levou a expulsão do Partido dos Trabalhadores todo o grupo político adepto à prefeita e nesse rol eu fui no meio. Logo em seguida houve um racha no PRC com um grupo ligado a José Guimarães que era o chefe de gabinete da prefeita, continuei no grupo da prefeita e fundamos o PRO – Partido da Revolução Operária porque acreditava na construção da revolução e a reflexão era que a crise capitalista estava cada vez mais se aproximando da barbárie e o partido tinha que está pronto para a revolução. O grupo toma a direção do Sindicato dos Metalúrgicos e passei a assessorar como gestor administrativo o Sindicato dos Metalúrgicos de Fortaleza já que havia ajudado na fundar a Central Única dos Trabalhadores – CUT, indo para as portas de fábrica conversar com a classe operária e demais categorias de trabalhadores.
 Estive com esse grupo até 1992, quando rompi com o PRO e fui candidato a vereador pelo PSB - Partido Socialista Brasileiro onde o grupo do PRO se abrigou após ser expulso do PT. Essa candidatura foi uma grande frustração no número de votos e um imenso aprendizado a cerca do processo eleitoral, o que me levou a desistir definitivamente com a idéia de mandato eletivo.
Em parceria com a companheira com quem casei, Lúcia Vasconcelos, uma militante da juventude cristã, além de cuidar dos filhos Leonardo e Leandson continuava engajado nas CEBs e nos movimentos populares estudando e me aprofundando na leitura sobre a educação popular, buscando um novo caminho na luta dos movimentos populares.
Aos 40 anos passei uma década de muitos desencantos, fiquei desempregado, entrei em depressão, tive de vender a moto que era apaixonado por ela, além de ser instrumento de mobilidade minha durante 12 anos, cheguei a receber sexta básica de alimento da família pra poder sobreviver, matriculei os filhos em escola pública, fui trabalhar em uma padaria de uma amiga de minha companheira e vender pão na calçada da Beira Mar, Praça da Juventude e Eudoro Correia. Todos os dias as 5 horas da manhã estava assando os pães e as 6 horas no ponto de venda. Escondia o rosto quando passava alguém que me conheceu no auge das lutas, felizmente nenhum veio me comprar pão. A clientela era mais de estrangeiros e pessoas que faziam dieta, eram pães naturais, de massa especial e receitas européias, vendia bem.
A situação veio a melhor quando fui convidado a ser assessor parlamentar do Deputado Federal Sergio Novais do PSB, levantei mais uma vez a auto estima, até porque ao meu lado estava uma equipe de intelectuais socialistas, como: Valton Miranda, Miguel Arruda, Gilvan Rocha, Ester Barroso, Napoleão Ferreira e os políticos Eudoro Santana e João Ananias com vasta experiência no parlamento e gestão pública o que me levou a me dedicar a estudar políticas públicas, gestão participativa, organizar oficinas de formação política, montar seminários temáticos sobre políticas públicas e análise de conjuntura, coordenar campanhas política majoritária, assessorar a formação de diretórios partidários do PSB, assessorar vereadores do partido no interior do Ceará. Com a eleição do Lula, em 2003 trabalhei no Departamento de Obras Contra a Seca – DNOCS junto com Eudoro Santana que passou a ser Diretor Geral, lá coordenei uma equipe de elaboração de projetos estatísticos sobre a situação dos equipamentos públicos do órgão em todo o nordeste.
Entrei na faculdade aos 50 anos de idade e com 54 anos me formei como graduado pela Universidade Vale do Acaraú em pedagogia.
Em 2004 comecei a trabalhar na Rede de Educação Cidadã - RECID onde iniciei com ações especificas voltadas para a educação popular tendo à frente o Instituto Paulo Freire e Assessoria Especial da Presidência Republica no Governo Lula. Ingressei nesse trabalho de 2003 a 2008 o objetivo era estimular, orientar e reforçar as organizações sociais e as prefeituras a buscarem as políticas públicas voltadas para as famílias de baixa renda, por meio do Programa Fome Zero e a Rede Talher.
Em 2009 comecei a trabalhar como assessor especial na Secretaria de Governo e Articulação Política de Caucaia e criei o Projeto Caucaia Território em que está incluso as etnias indígenas e quilombolas e a partir do projeto realizei trabalhos com oficinas metodológicas e pedagógicas buscando o auto-reconhecimento das comunidades reconhecidas pela população como negras e que elas próprias não se auto-reconheciam, e foi com esse trabalho que dez comunidades passaram a se reconhecerem como remanescente de quilombo e passaram a se organizar e buscar políticas públicas específicas para comunidades negras.
Aprovado em 2010 num concurso para professor da rede de ensino fundamental de Fortaleza, em 2012 fui chamado para assumir a função o que estou fazendo hoje e aproveitando as horas vagas para escrever e publicar livros, tendo já na coleção:
      MEMORIA HISTÓRICA
·         História das CEBs Comunidades Eclesiais de Base Frei Tito;
·         História de Frei Tito
·         Um andarilho em Abaiara;
CORDEL
·         Consciência negra;
·         Saberes africanos na escola;
·         A negra que podia ser anjo;
·         A Serra do Juá me encanta;
INFANTIL
·         História de assombração;
·         O guará e o guaxinim

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[1]                     Pessoa que conduzia os animais de carga em cangalha e cambito.